Cinema não é só drama, comédia, aventura, fantasia, terror… existe um cinema que procura contribuir com seu grão de areia para alertar as pessoas sobre as armadilhas (quase) invisíveis que nos cercam.
Em 2003 foi lançado “A Corporação” (The Corporation), um documentário revelador, com 2h25 de duração, dirigido por Mark Achbar e Jennifer Abbott, sobre o domínio que as grandes corporações exercem no planeta, inclusive sobre a legislação dos países, para se tornarem acima das leis, intocáveis e impunes façam o que quiserem fazer.
Agora nos chega no streaming (Netflix) A Conspiração Consumista (Buy Now! The Shopping Conspiracy, 2024).
O cinema não tem poder para mudar o mundo, mesmo um documentário contundente como esse não tem esse poder. O que o cinema pode fazer é ajudar você a compreender o que está escrito nas entrelinhas do mundo, o cinema é mais do que ver, é enxergar, e isso, convenhamos, não é pouco.
A Conspiração Consumista, roteirizado e dirigido por Nic Stacey, fala sobre o mundo do consumo em que estamos metidos e suas consequências (fatais) para a vida em pequeno, médio e longo prazos.
O filme não é nenhuma cruzada moralista contra o consumismo desenfreado que nunca é saciado (daí o título em inglês Compre Agora!), é apenas uma visão clara, realista, verdadeira de um fato que a indústria e os gigantes do comercio eletrônico fazem de tudo para esconder de nós os tais consumidores. Mas é como aquela imagem, desgastada mas precisa, do lixo sendo jogado para debaixo do tapete…
Um ex-CEO da Adidas, uma ex-diretora da Amazon, um engenheiro indiano que cria softwares, uma mulher que pesquisa nos supermercados as mentiras escritas nos rótulos das embalagens, um professor que acompanha passo-a-passo o descarte do lixo eletrônico para provar que essa conversa de reciclagem é pura balela. Esses são alguns dos entrevistados pelo filme, e o que eles dizem é de fazer corar frade de pedra (outra expressão desgastada, mas ainda muito eficiente).
O documentário, através do engenheiro indiano, nos informa que diariamente, sim todo dia, são descartados 13 milhões de aparelhos celulares no mundo. O professor que monitora o lixão eletrônico descarta, sem trocadilho, a expressão “jogado fora”. Não existe “fora” diz ele, esse lixo vai parar em algum lugar, e emenda: só há dois destinos para o lixo industrial, incineração (que vai provocar mais poluição) ou aterro sanitário, que de sanitário não tem nada, é uma cova para enterrar lixo (e esse lixo se infiltra na terra, contamina os lençóis freáticos…).
O documentário também mostra, não sem uma certa ironia, os 5 pontos que devem ser seguidos para multiplicar os lucros induzindo as pessoas, nós, a comprar além do necessário, a consumir compulsivamente as “novidades” ao nosso alcance com um simples clique a qualquer hora do dia ou da madrugada no comércio pela internet. Compre agora!
Responsabilidade é uma palavra que não existe nos manuais das grandes corporações, o excedente da produção gigantesca e desnecessária (um exemplo, o planeta tem 7 bilhões de habitantes, a indústria produz anualmente 9 bilhões de peças de roupas) elas empurram de volta para o consumidor na forma de “doações” (roupas e calçados, por exemplo, para os países pobres da África, mas essa solidariedade de araque acaba criando mais problemas que benefícios, vejam o filme e saibam o motivo).
A indústria de alimentos também é tema do filme, as formas como eles descartam os excedentes para impedir que os sem-teto aproveitem alguma coisa é de uma crueldade inominável, e isto está acontecendo agora enquanto você lê essas linhas.
A cultura do desperdício é o motor que impulsiona essa perversa indústria-comércio que é hegemônico hoje no mundo, as empresas, nos lembra a ex-diretora da Amazon, tratam isso com métodos científicos buscando induzir o consumo em todas as fases desde a produção até a comercialização dos produtos que hoje têm uma obsolescência programada, quando você tira o produto da loja ele já começa a se tornar obsoleto e, no caso dos eletrônicos (celulares, impressoras, fones de ouvido), vida útil de no máximo 2 anos.
Essa indução ao consumo utilizando metodologia científica (desde estatística até psicologia) me lembrou aqueles gansos europeus que são obrigados a comer sem parar com um funil introduzido na boca onde são despejados litros de milho, o objetivo é engordurar o fígado da ave para obter mais lucro na confecção de patês. Obviamente não temos um funil enfiado na garganta, a nossa compulsão é provocada diretamente no cérebro com estímulos (e práticas) cada vez mais sofisticados e perversos (similar ao funil nos gansos).
Um exemplo bem perto de nós dessa cultura do desperdício: um amigo meu comprou uma câmera de filmar/gravar, logo apareceu um problema num dos componentes do aparelho, ele então mandou para a oficina autorizada que alegou não ter a peça para reposição e indicou o fabricante para resolver o problema. A câmera está no fabricante há meses, eles já informaram ao meu amigo que a única solução para o problema é… comprar uma câmera nova.
As graves revelações do documentário não fazem dele um filme apocalíptico do tipo “não tem saída”, o filme mostra também uma reação que já começa a frutificar na Europa e nos Estados Unidos, consumidores organizando-se para, como o menino da fábula, gritar em uníssono: o rei está nu! E os resultados dessa rebelião com causa já começam a aparecer concretamente, mais uma vez convido você para ver o filme e saber como isto está dando certo.
Filmes assim são importantes, são necessários, podem até não alterar muita coisa (Simone de Beauvoir já disse que o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos, disse também muitas vezes é mais confortável suportar uma escravidão cega do que trabalhar para se libertar), mas deixam um registro honesto do que está acontecendo ao nosso redor, e quando o problema bater na nossa porta (e vai bater em breve, não tenha dúvida) já não poderemos dizer que não fomos avisados.
A Conspiração Consumista é um filme real, corajoso, contemporâneo, inquietante. Vejam e tirem suas próprias conclusões.
Romero Azevêdo