O cinema sempre foi integrado à máquina publicitária das guerras, quer seja antes na propaganda para convencer os jovens a se alistarem para morrerem ou voltar mutilados “pela pátria”, quer seja durante o conflito para alimentar o ufanismo e o apoio da sociedade civil, quer seja depois exaltando os feitos dos vencedores e derrotando mais uma vez, agora no campo da comunicação de massa, os perdedores.
Um estudo detalhado sobre a utilização do cinema como propaganda política-militar é “De Caligari a Hitler Uma História Psicológica do Cinema Alemão” de Siegfried Kracauer, livro raro cuja última edição brasileira foi lançada em 1988 por Jorge Zahar Editor.
Mas existe um cinema que sempre se posicionou contra a estupidez das guerras e mostra em poderosas imagens e diálogos essa corajosa posição antibelicista.
São filmes que se impõem pela sua verdade e sinceridade, não estão do lado da facção B ou facção A, estão sim se opondo à insanidade de todas as guerras.
Fizemos uma lista com filmes sobre essa temática, se você puder ver alguns deles, ou todos, não perca tempo. Garanto que vai sair enriquecido dessa experiência.
O primeiro filme que indicamos é “Johnny Vai À Guerra” (exibido recentemente no Cineclube do Memorial “Casa de Severino Cabral”, do qual somos curadores de programação e debates). É uma produção de 1971, dirigida por Dalton Trumbo, lendário roteirista dos anos 40, 50,60 e 70 em Hollywood. O filme é uma adaptação do próprio livro escrito por Trumbo em 1938 (“Uma Arma Para Johnny”, a edição da Civilização Brasileira, lançada em 1967, pode ser comprada na Estante Virtual), e narra a estória de um soldado que fica gravemente mutilado na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) restando apenas as funções vitais, o cérebro e a consciência intactos. É a guerra vista a partir das reflexões de um morto-vivo e a opinião dos militares que o mantém vegetando aprisionado numa cama de hospital.
Embora, como sempre, o livro seja mais completo, a transposição para a linguagem cinematográfica, feita pelo próprio Dalton Trumbo, conserva a essência do texto e, em alguns momentos, como na cena final, o efeito dramático é superior ao do livro.
Outro manifesto contra a guerra em forma de filme é o excelente “Vergonha”, de 1968, ano do ápice das atrocidades na guerra do Vietnã como o massacre de My Lai, por exemplo. Um casal de ex-músicos profissionais mora numa fazenda em uma ilha predominantemente rural, a guerra avança sobre eles e começa a ameaçar suas vidas e o pouco que eles têm. O filme não mostra cenas de batalhas, apenas tropas se deslocando sem identificação de país, corpos de pessoas mortas, casas destruídas ou em chamas. Ao optar por essa forma narrativa, o diretor sueco Ingmar Bergman reforça a opressão da guerra sobre a vida das pessoas comuns (inclusive animais domésticos) e deixa claro que qualquer guerra, não importando suas motivações, é uma vergonha para a humanidade e não existe explicação que a justifique.
Um notável libelo antibélico é “Uma Vida Oculta” (2019). O diretor Terrence Malick aborda um evento real: a história de um herói desconhecido, Franz Jägerstätter, que se recusou a lutar pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Quando o camponês austríaco é ameaçado de execução por traição, é sua fé inabalável e seu amor por sua esposa, Fani, e seus filhos que mantêm seu espírito vivo. Um exemplo de dignidade, coragem e honra em oposição ao estrupício que é a guerra. Deveria ser exibido nas escolas como matéria obrigatória.
Indico ainda o impactante “A Ascenção”, dirigido pela ucraniana Larisa Shepitko em 1977. Talvez o mais profundo filme sobre a tragédia da guerra e a sordidez e crueldade dos desalmados envolvidos nela com sua total ausência de humanidade. Uma visão realista do que é no fundo uma guerra: um jogo sujo de poder disfarçado de cruzada patriótica.
Temos ainda não um filme “de guerra”, mas “sobre a guerra”. É o documentário japonês “O Exército Nu do Imperador Continua Marchando”, de Kazuo Hara, feito em 1987. Nele o cineasta acompanha o ex-combatente Okuzaki Kenzo durante os anos de 1982 até 1987, em sua campanha para denunciar os crimes cometidos pelo exército do imperador Hiroito durante a segunda guerra, inclusive casos de canibalismo praticados contra soldados e oficiais de baixa patente. Numa cruzada solitária, incansável e corajosa num carro de som através de várias cidades, Okuzaki persegue seus ex-oficiais (responsáveis pelos crimes) exigindo que peçam desculpas às vítimas de seus inaceitáveis crimes de guerra.
Na sequência listamos “Hair” de Milos Forman (1979), adaptação para o cinema do hoje cult musical da Broadway de 1967, escrito por James Rado e Gerome Ragni, também letristas das músicas compostas por Galt MacDermot, músicas que se eternizaram no repertório pop internacional. O filme, multicolorido em seus figurinos de época, conserva o frescor e a juventude do movimento hippie cantando e dançando pacificamente nas ruas e praças de New York, lutando pelo fim da guerra no Vietnã, uma guerra absurda, como todas as guerras, que estava trucidando os jovens americanos e o povo vietnamita.
O notável romance pacifista do escritor alemão Erich Maria Remarque lançado em 1929, Sem Novidade no Front, ganhou em 2022 sua terceira versão para o cinema. Em síntese o livro trata dos horrores vividos nos campos de batalha da primeira guerra mundial (1914-1918) pelos jovens soldados alemães (entre eles o próprio escritor aos 18 anos), que foram induzidos a participar da carnificina ludibriados por discursos demagógicos, assentados numa ideologia mentirosa, que glorificavam a guerra e seduziam a juventude para “morrer com honra pela pátria”.
A primeira adaptação para a tela foi feita em 1930, pelo diretor americano Lewis Milestone e causou grande mal-estar na nascente Alemanha nazista, a exibição só foi liberada depois de profundos cortes impostos pela censura. O libelo antibelicista produzido pela Universal arrebatou dois prêmios Oscar: o de melhor filme e o de melhor diretor. As implicações desse filme nas relações diplomáticas entre os Estado Unidos e a Alemanha nos anos 1930 estão detalhadas no ótimo livro O Pacto entre Hollywood e o Nazismo – Como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler), de Ben Urwand (São Paulo: Leya, 2019).
Em 1979 outra produção americana adapta o romance de Remarque, Adeus à Inocência (título em português) sob a direção de Delbert Mann. Além da novidade do uso da cor (a primeira versão é em preto-e-branco), o filme aborda por novos ângulos a rica e detalhada história contada no livro, botando por terra essa bobagem reinante hoje de não dar um spoiler. Na minha modesta compreensão o importante em um filme não é a sua história, mas a forma como ela é contada, isso é o que importa. Todos sabemos que Romeu e Julieta morrem no fim e o que o Titanic está condenado ao naufrágio, por exemplo, mas as situações, diálogos, ritmo, música e encenação que conduzem a esse desfecho é o que torna um filme objeto do nosso interesse ou não, o demais é secundário.
A terceira e mais nova versão cinematográfica desse livro de leitura obrigatória para os que amam a vida e respeitam o direito de viver do próximo está disponível na Netflix, trata-se de Nada de Novo no Front, filme alemão produzido em 2022 como já adiantamos antes.
A primeira grande novidade dessa versão é o fato de ser dirigida e interpretada por alemães, é a primeira vez que o romance ganha no cinema uma leitura feita pelos descendentes daquela tragédia humana. O diretor Edward Berger conduz a sua câmera como se fosse uma personagem, ela está colada nos atores, chafurda na lama, rasteja pelo chão, mas também se distancia ao máximo, em plongée total graças ao uso funcional do drone, ao mesmo tempo mostrando a cena em sua plenitude e fugindo daquele horror sanguinolento como que dando um tempo para o espectador recompor a respiração.
O realismo das cenas de ação é impressionante, mas ao contrário de espetacularizar a violência como a maioria dos filmes de guerra faz, essas cenas nos convidam à reflexão e nos põem a pensar sobre a estupidez de qualquer guerra, não importando suas motivações e justificativas.
A imbecilidade cruel da guerra, em qualquer tempo e em qualquer lugar, é demonstrada de forma inequívoca numa cena onde os soldados invadem o refeitório numa trincheira, matam os opositores e devoram como animais famintos a comida sobre a mesa tendo como companhia os cadáveres estendidos no chão. Morte e vida entrelaçadas na chacina que preludia o macabro banquete.
As cenas da sequência que marca o anúncio do armistício pondo fim à guerra são de uma beleza trágica comovente, a poucos minutos da hora combinada na mesa de negociações, 11 horas da manhã, os soldados em ferrenha luta corporal se entreolham e num raro lampejo de consciência, antes de se matarem estupidamente, percebem o absurdo daquela peleja desistindo ambos de continuá-la.
Uma equipe de treze profissionais cuidou da maquiagem expressionista, com máscaras de lama seca cobrindo o rosto dos soldados, nos lembrando o episódio O Túnel do filme Sonhos (1990) de Akira Kurosawa onde o yurei (fantasma de um soldado japonês morto) persegue o seu comandante vivo para pedir explicações sobre a inexplicável asneira da guerra. Tal como nesse clássico japonês, no filme de Berger a maquiagem sublinha que os soldados são mortos-vivos perambulando pelos umbrais do óbito.
A trilha sonora criada por Volker Bertelmann é outro ponto de destaque desse remake, a música nos lembra o tempo todo o tom macabro de um teatro de guerra onde a morte é naturalizada e das pilhas de cadáveres dos soldados que tombaram só importa mesmo a plaqueta de identificação para o preenchimento dos relatórios burocráticos das baixas nas trincheiras e campos de enfrentamento.
As negociações para o cessar-fogo entre franceses e alemães expõem de forma crua a frieza dos desalmados senhores da guerra que mandam os jovens para o cadafalso, mas se mantém covardemente bem protegidos em seus gabinetes na retaguarda.
Nada de Novo no Front nos surpreende pela capacidade de narrar uma história por demais conhecida de uma forma totalmente nova, com interpretações magníficas, uma fotografia dirigida pelo inglês James Friend onde, como já disse, a câmera se integra à ação como uma personagem, a edição de Sven Budelmann mantém o ritmo dramático sem a necessidade de utilizar cacoetes como dar solavancos na imagem para causar sustos no espectador. É uma superprodução brilhante que reproduz com fidelidade histórica no figurino (Lisy Christl), cenários (Ernestine Hipper), locações e adereços de cena (Patrick Herzberg e Jindrich Kocí sob a direção de Pavel Vojtisek) o ambiente da frente ocidental alemã na primeira das guerras mundiais.
Já foi dito que a maior forma de corrupção é o assassinato, ele subtrai o bem para o qual não tem reposição: a vida. A guerra é o altar profano onde se celebra essa corrupção maior, não a aceitar em hipótese alguma é imperativo e inadiável.
Reflita sobre isso.
Por: Romero Azevêdo
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