“Ninguém hoje, no Brasil, que se interesse pelas questões ligadas à expressão artística ou à psiquiatria, ou a ambas, pode ignorar a contribuição de Nise da Silveira. Contribuição essa que é marcada, de um lado, pela coragem intelectual de romper com o estabelecido e, de outro, pela identificação profunda com o sofrimento do seu semelhante.”
As palavras escritas por Ferreira Gullar, em 1996, já eram válidas 50 anos antes e permanecem verdadeiras até hoje. Assim ele começa seu livro Nise da Silveira – Uma Psiquiatra Rebelde, biografia da médica que revolucionou o tratamento psiquiátrico, nascida em Maceió, no dia 15 de fevereiro de 1905, há exatos 120 anos.
Aos 15 anos, na Faculdade de Medicina
A “coragem” mencionada por Gullar se revelou logo cedo, quando ela decidiu cursar medicina em 1921, apesar de se sentir mal ao ver sangue e de ser a única mulher entre mais de 150 homens na sua turma na Faculdade de Medicina da Bahia. Nise tinha apenas 15 anos. Um ano depois de concluir o curso, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se especializou em neurologia e psiquiatria e passou a trabalhar na unidade pública de saúde mental então denominada Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental.
Mas, assim como muitos intelectuais, ela foi presa pelo governo Vargas acusada de envolvimento com a causa comunista e foi afastada do serviço público até 1944.
A parte mais conhecida de sua trajetória começa neste mesmo ano, quando ela consegue ser reintegrada aos quadros públicos e assume um posto no Centro Psiquiátrico Pedro II, no bairro de Engenho de Dentro, na zona norte do Rio de Janeiro.
Mania de liberdade
Os quase 2 anos que Nise passou no cárcere aprofundaram nela a “mania de liberdade”, termo que ela iria repetir muitas vezes posteriormente, e também a importância de não se deixar consumir pelo vazio.
E o Pedro II guardava muitas semelhanças com a prisão. Eram mais de 1 mil pacientes, de ambos os sexos e de todas as idades. A maioria tinha diagnóstico de esquizofrenia crônica e, para muitos, o hospital tinha uma porta de entrada, mas não de saída.
O início da rebeldia
Os pacientes viviam enclausurados, em condições insalubres, sem realizar nenhuma atividade criativa e eram submetidos a tratamentos reconhecidos atualmente como violentos, mas completamente aceitos e disseminados entre os psiquiatras de todo mundo naquela época, como a lobotomia, o eletrochoque e a terapia de choque por insulina. Mas Nise não era como todo mundo. Bastou assistir a uma sessão de eletrochoque e ver os efeitos danosos da terapia com insulina, para que a médica se recusasse a aplicar esses “tratamentos”, o que lhe rendeu o título de “rebelde” que ela fez questão de nunca mais abandonar.
A direção do hospital, então, relegou à Nise uma atividade considerada de segunda classe, a terapia ocupacional. Em entrevista a Ferreira Gullar, publicada no mesmo livro, Nise conta que a ocupação dos pacientes era “varrer, limpar os vasos sanitários, servir os outros doentes”. A médica então criou uma sala de costura e depois um ateliê de pintura.
“A inovação consistiu exatamente em abrir para eles o caminho da expressão, da criatividade, da emoção de lidar com os diferentes materiais de trabalho”, explicou a médica ao escritor.
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O início da ‘revolução’
A partir daí, a revolução começou, inclusive com os nomes. Nise se recusava a chamar os internos de pacientes e preferia o termo “clientes”. Durante as oficinas, os tratava com afeto, e não com indiferença. O setor de terapia ocupacional chegou a ter 17 atividades diferentes, e ela também utilizava os pátios, onde os “clientes” eram colocados para tomar sol, em um local para festas e outras atividades coletivas. E o resultado dessas atividades era cuidadosamente guardado ou registrado pela médica, como material de pesquisa.
Poucas pessoas conhecem esse material tão bem quanto Luiz Carlos Mello. O atual diretor do Museu de Imagens do Inconsciente – fundado por Nise – trabalhou com a médica por 26 anos, contribuindo com suas pesquisas e com a organização do seu gigantesco acervo, reconhecido como Memória do Mundo pela Unesco.
Ele conheceu Nise em 1974, quando entrou no Pedro II como estagiário, “muito jovem e muito tímido” e começou a participar do seu grupo de pesquisas. Mas só se tornou seu colaborador em 1975, ano em que a médica foi aposentada compulsoriamente por completar 70 anos.
“Quando eu cheguei, o acervo já tinha quase 200 mil obras. Foi a fase reflexiva dela, de pegar o saber, os conhecimentos dela e transformar em livros, cursos, documentários. Ela tinha um rigor de trabalho impressionante e um conhecimento universal extraordinário, então gerou muitos frutos”, lembra Luiz Mello.
“Ela enfrentou resistência durante toda sua carreira: “Ela criava um ambiente sem grades. Os clientes eram chamados pelo nome, uma das bases do trabalho dela era a relação afetiva. E em qualquer doença, não só a doença mental, com um ambiente favorável, o prognóstico é melhor”.
As obras produzidas pelos clientes revelavam emoções que eles não conseguiam organizar e exprimir em palavras, e com o passar do tempo, comprovavam também sua melhora. Em outros casos, atestavam o malefício das terapias tradicionais. Um dos exemplos mais contundentes é o de Lúcio Noeman, que esculpia guerreiros em gesso com muita técnica e precisão, mas foi submetido a uma lobotomia, e depois disso só conseguia produzir figuras disformes.
Símbolo da unidade
“Segundo a psiquiatria da época, a principal característica da loucura é a perda da unidade do indivíduo. Mas no atelier eram feitas imagens de mandalas em círculos, o que era uma contradição na própria doença, porque o círculo, por excelência, é o símbolo da unidade. Foi aí que ela escreveu uma carta ao Jung [psiquiatra e psicoterapeuta suíço], com fotografias, perguntando se realmente eram mandalas e por que elas apareciam em tão grande quantidade na produção deles. Menos de um mês depois, ele respondeu dizendo que realmente eram mandalas e que corresponderiam às forças auto-curativas da psiquê. Então, se a pessoa vive um estado de confusão mental, de dissociação, existem forças no inconsciente que contrabalanceiam isso, que buscam a unidade, a reestruturação”, destaca Luiz Carlos Mello.
Em uma carta seguinte, Jung escreveu: “O signatário desta carta convida a senhora doutora Nise da Silveira a se juntar ao semestre de verão de 1957 do Instituto C. G. Jung – Zurique”, o que deu início a uma profícua relação de Nise com os pesquisadores do instituto – ela chegou a ser analisada por uma de suas discípulas, a psicoterapeuta Marie-Louise von Franz – e com o próprio Jung. A partir daí, Nise se tornou grande disseminadora das teorias de Jung no Brasil, e seus trabalhos também ganharam maior dimensão internacional.
Terapia com animais
Nise também foi pioneira na terapia com animais, algo que hoje é largamente utilizado, com evidências científicas da sua efetividade. De acordo com Luiz Mello, essa ideia partiu da observação atenta dos clientes.
“Nise sempre gostou de bicho. E um doente chegou para ela com um cachorro machucado e perguntou se poderia cuidar desse cachorro. A doutora Nise deu condições e começou a observar que, à medida que o bicho melhorava, o paciente também melhorava”, recorda Luiz Mello.
Inconformada com a grande reincidência de pacientes internados – que chegava a 70% -, Nise também se lançou a um empreendimento que Luiz Mello considera uma antecipação, em mais de 30 anos, dos centros de Atenção Psicossocial, que hoje são as grandes âncoras do serviço público de saúde mental do Brasil. A Casa das Palmeiras, fundada pela médica em 1956, atendia pessoas com transtornos mentais de forma gratuita, sem internação, aplicando a reabilitação ocupacional que ela criou. O local permanece aberto até hoje, mas depois de enfrentar dificuldades financeiras, passou a cobrar mensalidade dos pacientes.
Com Agência Brasil
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