Se a literatura brasileira tivesse um cheiro, talvez fosse o de doce de figo, feito no tacho de cobre por mãos que também sabiam transformar o cotidiano em poesia. É mais ou menos assim que se pode lembrar de Cora Coralina, nome literário de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, cuja morte completa 40 anos nesta quinta-feira (10).
Cora nasceu em Goiás, quando a cidade ainda era capital do estado. De família tradicional, pegou a contramão do destino que costumava ser reservado a mulheres do seu tempo. Começou a escrever adolescente, nos jornais locais. Não passou do ensino primário, mas frequentava rodas de leitura e fazia versos como quem borda toalhas: com paciência e escuta.
Casou-se com um chefe de polícia paulista e trocou a paisagem do cerrado pelo interior de São Paulo. Viúva antes dos 40, com filhos pequenos e poucos recursos, virou o que hoje seria chamada de microempreendedora. Fez linguiça, pão, doce e, quando dava tempo, poesia. Morou em cidades que não rendem hashtags nem capas de livro. Andradina, Penápolis. Mas seguia escrevendo.
Foi só depois de retornar à velha Goiás, já nos anos 1950, que decidiu assumir sua escrita como profissão — ou vocação. Montou uma pequena venda de doces artesanais, virou figura da cidade. Publicou seu primeiro livro aos 75 anos. Repetindo: setenta e cinco. Não por falta de talento ou vontade, mas por ausência de ouvidos atentos à voz de uma mulher, do interior, sem diploma, que escrevia sobre a vida sem floreio.
Ainda assim, chegou lá. E chegou com tudo. Sua obra foi parar nas escolas, suas frases nos murais das repartições, nas redes sociais e nas lembranças de quem encontrou, nos versos dela, o Brasil de dentro — com vassoura na varanda, beco de pedra e cheiro de café passado.
Cora mostrou que a literatura não mora só nas avenidas da Zona Sul do Rio ou nas editoras da Avenida Paulista. Ela pode nascer na cozinha, entre uma fornada de pão de queijo e um caderno escondido na gaveta. Não se trata de romantizar o obstáculo, mas de reconhecer o feito: vencer o silêncio, o preconceito, a pressa do mundo.
Quarenta anos depois, sua poesia continua viva — e, talvez, ainda mais necessária. Porque lembra, sem gritar, que talento não tem CEP, nem idade. E que a doçura, quando é genuína, resiste ao tempo.
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