O notável romance pacifista do escritor alemão Erich Maria Remarque (pseudónimo de Erich Paul Remark) lançado em 1929, Nada de novo no Front, ganha sua terceira versão para o cinema. Em síntese o livro trata dos horrores vividos nos campos de batalha da primeira guerra mundial (1914-1918) pelos jovens soldados alemães (entre eles o próprio escritor aos 18 anos), que foram induzidos a participar da carnificina ludibriados por discursos demagógicos, assentados numa ideologia mentirosa, que glorificavam a guerra e seduziam a juventude para “morrer com honra pela pátria”. Não custa lembrar que o livro foi queimado em praça pública pelos nazistas no início da segunda guerra mundial e proibido de circular em toda a Alemanha.
A primeira adaptação para a tela foi feita em 1930, pelo diretor americano Lewis Milestone e causou grande mal-estar na nascente Alemanha nazista, a exibição só foi liberada depois de profundos cortes impostos pela censura. O libelo antibelicista produzido pela Universal arrebatou dois prêmios Oscar: o de melhor filme e o de melhor diretor. As implicações desse filme nas relações diplomáticas entre os Estado Unidos e a Alemanha nos anos 1930 estão detalhadas no ótimo livro O Pacto entre Hollywood e o Nazismo – Como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler), de Ben Urwand (São Paulo: Leya, 2019).
Em 1979 outra produção americana adapta o romance de Remarque, Adeus à Inocência (título em português) sob a direção de Delbert Mann. Além da novidade do uso da cor (a primeira versão é em preto-e-branco), o filme aborda por novos ângulos a rica e detalhada história contada no livro, botando por terra essa bobagem reinante hoje de não dar um spoiler. Na minha modesta compreensão o importante em um filme não é a sua história, mas a forma como ela é contada, isso é o que importa. Todos sabemos que Romeu e Julieta morrem no fim e o que o Titanic está condenado ao naufrágio, por exemplo, mas as situações, diálogos, ritmo, música e encenação que conduzem a esse desfecho é o que torna um filme objeto do nosso interesse ou não, o demais é secundário.
A terceira e mais nova versão cinematográfica desse livro de leitura obrigatória para os que amam a vida e respeitam o direito de viver do próximo foi lançada em 2022, trata-se do filme alemão Nada de Novo no Front (Oscar de melhor filme internacional em 2023).
A primeira grande novidade dessa versão é o fato de ser dirigida e interpretada por alemães, é a primeira vez que o romance ganha no cinema uma leitura feita pelos descendentes daquela tragédia humana. O diretor Edward Berger conduz a sua câmera como se fosse uma personagem, ela está colada nos atores, chafurda na lama, rasteja pelo chão, mas também se distancia ao máximo, em plongée total graças ao uso funcional do drone, ao mesmo tempo mostrando a cena em sua plenitude e fugindo daquele horror sanguinolento como que dando um tempo para o espectador recompor a respiração.
O realismo das cenas de ação é impressionante, mas ao contrário de espetacularizar a violência como a maioria dos filmes de guerra faz, essas cenas nos convidam à reflexão e nos põem a pensar sobre a maior forma de corrupção que existe que é o assassinato, não importando suas motivações e justificativas.
A imbecilidade cruel da guerra, em qualquer tempo e em qualquer lugar, é demonstrada de forma inequívoca numa cena onde os soldados invadem o refeitório numa trincheira, matam os opositores e devoram como animais famintos a comida sobre a mesa tendo como companhia os cadáveres estendidos no chão. Morte e vida entrelaçadas na chacina que preludia o macabro banquete.
As cenas da sequência que marca o anúncio do armistício pondo fim à guerra são de uma beleza trágica comovente, a poucos minutos da hora combinada na mesa de negociações, 11 horas da manhã, os soldados em ferrenha luta corporal se entreolham e num raro lampejo de consciência, antes de se matarem estupidamente, percebem o absurdo daquela peleja desistindo ambos de continuá-la.
Uma equipe de treze profissionais cuidou da maquiagem expressionista, com máscaras de lama seca cobrindo o rosto dos soldados, nos lembrando o episódio O Túnel do filme Sonhos (1990) de Akira Kurosawa onde o yurei (fantasma de um soldado japonês morto) persegue o seu comandante vivo para pedir explicações sobre a inexplicável asneira da guerra. Tal como nesse clássico japonês, no filme de Berger a maquiagem sublinha que os soldados são mortos-vivos perambulando pelos umbrais do óbito.
A trilha sonora criada por Volker Bertelmann é outro ponto de destaque desse remake, a música nos lembra o tempo todo o tom macabro de um teatro de guerra onde a morte é naturalizada e das pilhas de cadáveres dos soldados que tombaram só importa mesmo a plaqueta de identificação para o preenchimento dos relatórios burocráticos das baixas nas trincheiras e campos de enfrentamento.
As negociações para o cessar-fogo entre franceses e alemães expõem de forma crua a frieza dos desalmados senhores da guerra que mandam os jovens para o cadafalso, mas se mantém covardemente bem protegidos em seus gabinetes na retaguarda.
Nada de Novo no Front nos surpreende pela capacidade de narrar uma história por demais conhecida de uma forma totalmente nova, com interpretações magníficas, uma fotografia dirigida pelo inglês James Friend onde, como já disse, a câmera se integra à ação como uma personagem, a edição de Sven Budelmann mantém o ritmo dramático sem a necessidade de utilizar cacoetes como dar solavancos na imagem para causar sustos no espectador. É uma superprodução brilhante que reproduz com fidelidade histórica no figurino (Lisy Christl), cenários (Ernestine Hipper), locações e adereços de cena (Patrick Herzberg e Jindrich Kocí sob a direção de Pavel Vojtisek) o ambiente da frente ocidental alemã na primeira das guerras mundiais.
Todas as versões citadas estão disponíveis em várias plataformas de streaming, veja e confira.
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