Num mundo inundado de informações, são as ausências que nos assombram com mais força. Pessoas que saem para comprar pão e não voltam, que pegam um ônibus e somem no caminho, que escrevem uma última carta e desaparecem sem deixar rastros. Casos assim nos prendem não apenas pela curiosidade mórbida, mas por aquilo que dizem, silenciosamente, sobre o medo que nos cerca. A ausência de explicação, o vazio físico e simbólico, transforma esses desaparecimentos em histórias que resistem ao tempo — e que talvez já formem, por si, um gênero narrativo.
Na mais recente edição de sua newsletter, o escritor e jornalista Braulio Tavares faz essa provocação: por que somos tão atraídos por histórias de desaparecimentos? E por que elas se instalam tão fundo na literatura, no noticiário, na cultura popular?
Não faltam exemplos. O caso do piloto francês Antoine de Saint-Exupéry, desaparecido em 1944 durante uma missão de reconhecimento, nunca foi completamente solucionado. Só em 1998 pedaços do avião foram encontrados no Mediterrâneo. Mesmo assim, a dúvida persiste — ele caiu, foi abatido, ou decidiu sumir? Para muitos leitores, é como se o autor de O Pequeno Príncipe tivesse partido para encontrar seu próprio planeta B-612.
No Brasil, histórias como a de Margarida Maria Alves, sindicalista assassinada em 1983, ou do jornalista Vladimir Herzog, morto pela ditadura em 1975, muitas vezes se confundem com casos de desaparecimento. Mas há também aqueles que somem sem qualquer confirmação do que ocorreu — como o jornalista José Carlos de Assis, que investigava corrupção nos anos 1980 e por pouco não se tornou um desses nomes no limbo da história.
A literatura alimenta e se alimenta desses casos. Em A Desaparição, do francês Georges Perec, uma letra — o “e” — desaparece do texto inteiro, instaurando uma busca não apenas fonética, mas metafísica. Em Desaparecer é o maior dos ofícios, de David Toscana, o sumiço se torna profissão, quase um ideal.
O próprio noticiário colabora com o fascínio. Em 2022, no interior do Amazonas, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips desapareceram durante uma viagem de barco. Por dias, a narrativa pública oscilou entre esperança, medo e fúria, até a confirmação do assassinato. O tempo em que ambos estiveram “desaparecidos” foi suficiente para gerar versões, teorias e comoções que ultrapassaram o caso.
Psicólogos apontam que o desaparecimento é, talvez, o trauma mais difícil de elaborar. “Sem corpo, sem prova, sem ritual de luto, a mente se recusa a aceitar a perda. O desaparecido vira uma possibilidade eterna”, explica a psicóloga forense Carla Monteiro, que há duas décadas trabalha com famílias de desaparecidos em São Paulo. Segundo ela, é comum que parentes deixem o quarto intacto por anos, com roupas limpas no armário e comida preferida no freezer.
É esse espaço entre o fato e a ficção que torna os desaparecimentos uma matéria-prima tão poderosa. “A ausência tem um poder narrativo imenso”, afirma a professora de literatura comparada Lúcia Falcão, da UFRJ. “É o que faz de Bartleby, de Melville, um personagem tão inesquecível. Ele não faz nada. Ele apenas recusa. E depois some.”
Num tempo em que tudo parece ser rastreável, monitorável, geolocalizável, o desaparecimento se torna um ato quase místico. Um lembrete de que há coisas que escapam — da lei, da tecnologia, da compreensão. E, talvez por isso, não conseguimos parar de contar essas histórias.
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