Durante muito tempo, o câncer de pâncreas esteve relacionado, sobretudo, a fatores como tabagismo, predisposição genética e infecções por HPV. Agora, um novo e robusto estudo da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), braço da Organização Mundial da Saúde (OMS), traz um dado incômodo para os apreciadores de álcool: mesmo entre pessoas que nunca fumaram, o consumo frequente de bebidas alcoólicas aumenta o risco desse tipo de tumor — um dos mais difíceis de diagnosticar e com alta taxa de mortalidade.
O estudo analisou dados de cerca de 2,5 milhões de pessoas acompanhadas por mais de 16 anos em quatro continentes. Ao longo desse período, foram identificados mais de 10 mil casos de câncer de pâncreas. Segundo o investigador Pietro Ferrari, da IARC, o novo levantamento rompe com a dúvida que pairava sobre a influência direta do álcool nesse tipo de câncer: “Nossa análise mostrou que a associação se mantém mesmo para não fumantes, indicando que o álcool em si é um fator de risco independente”.
A pesquisa levou em conta variáveis como tabagismo, diabetes e índice de massa corporal, ajustando os dados para obter uma leitura mais precisa dos efeitos do álcool isoladamente. O risco cresce de forma proporcional à quantidade ingerida. Cada aumento de 10 gramas por dia no consumo elevou em 3% a probabilidade de desenvolvimento da doença. Para se ter uma ideia, uma lata de cerveja comum (350 ml) com 5% de teor alcoólico já soma cerca de 14 gramas de álcool puro.
Entre as mulheres que ingeriam entre 15 e 30 gramas diários, o risco subiu 12% em comparação com quem bebia pouco. Já entre homens que consumiam de 30 a 60 gramas por dia, a chance de desenvolver o câncer aumentou em 15%. Acima dos 60 gramas, o risco saltou para 36%.
A má notícia não vem sozinha. O câncer de pâncreas, embora não esteja entre os mais incidentes — é o 12º mais comum no mundo —, figura entre os mais letais, com mortalidade praticamente equivalente à taxa de novos casos. No Brasil, o Instituto Nacional de Câncer (Inca) estima cerca de 11 mil diagnósticos e igual número de mortes por ano.
Boa parte dessa letalidade se deve ao fato de que a doença costuma ser silenciosa nos estágios iniciais. Quando surgem, os sintomas — como dores abdominais ou nas costas, fraqueza, icterícia e perda de peso — já indicam avanço significativo. Para piorar, são sinais que também aparecem em outros problemas, como hepatite ou doenças digestivas, o que dificulta o diagnóstico precoce.
O pâncreas é responsável por funções vitais, como a produção de insulina e enzimas digestivas. Sua deterioração compromete o controle glicêmico e a absorção de nutrientes. Curiosamente, a diabetes pode ser tanto um fator de risco quanto um sintoma precoce da doença.
Os dados também revelam nuances geográficas: na Ásia, por exemplo, não foi observada uma relação estatística significativa entre consumo de álcool e câncer pancreático. Já em regiões como Europa, América do Norte e Austrália, a associação foi clara — principalmente entre quem consome cerveja e bebidas destiladas. O vinho, por outro lado, não mostrou vínculo direto, algo que os pesquisadores atribuem a padrões culturais e ao perfil de consumo.
O estudo da IARC não pretende demonizar o álcool de forma absoluta, mas alerta para uma relação antes pouco reconhecida. Para Ferrari, os dados são mais um motivo para que autoridades de saúde pública reforcem campanhas de conscientização sobre os efeitos do álcool a longo prazo, mesmo em quantidades consideradas “moderadas”.
Em tempos em que o consumo recreativo de bebidas muitas vezes é romantizado, o estudo propõe uma pausa. E talvez uma reflexão: o que é, de fato, beber socialmente — e o que se está arriscando no processo?
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