Não se trata de fraqueza de caráter, nem de falta de força de vontade. Para o médico Gabor Maté, especialista em medicina de família e com décadas de atuação junto a populações vulneráveis no Canadá, o vício é uma tentativa — muitas vezes desesperada — de silenciar dores emocionais profundas. Em seu livro No Reino dos Fantasmas Famintos, ele lança um olhar sensível e provocador sobre a dependência, rompendo com discursos punitivos ainda tão presentes na saúde mental.
O título da obra, inspirado em uma metáfora budista que descreve espíritos eternamente insatisfeitos, já revela a premissa central: por trás de todo comportamento compulsivo, existe uma necessidade legítima não atendida — de acolhimento, segurança, pertencimento. Maté sustenta que a origem do vício raramente está na substância em si, mas no sofrimento psicológico que ela promete, ainda que de forma ilusória, aliviar.
Seu trabalho se apoia em pesquisas da neurociência, relatos clínicos e também em sua experiência pessoal. Maté reconhece a existência de traços compulsivos em si mesmo, o que torna sua abordagem menos hierárquica e mais empática. “A pergunta não é ‘por que o vício?’, mas ‘por que a dor?’”, escreve ele — uma inversão simples, mas poderosa.
Ao mergulhar nos bastidores emocionais da dependência, Maté destaca a ligação entre traumas infantis, abandono afetivo e o desenvolvimento de comportamentos autodestrutivos. Ele observa que muitas pessoas que vivem com vícios foram, em algum momento, crianças negligenciadas, emocionalmente ignoradas ou expostas a níveis altos de estresse — mesmo que tudo isso tenha ocorrido em contextos que socialmente pareciam “normais”.
A proposta de Maté não é inocente nem permissiva. Ele não minimiza os danos causados pelo uso compulsivo de drogas, álcool, comida ou comportamentos como o trabalho excessivo. Mas aponta que, para romper com o ciclo da dependência, é preciso compreender que a compulsão é uma linguagem — muitas vezes a única possível — para expressar feridas que nunca receberam escuta.
O livro também problematiza a forma como os sistemas de saúde tratam a dependência: quase sempre com soluções punitivas ou desumanizadas. Em vez disso, Maté propõe uma abordagem baseada na escuta ativa, na reconstrução da segurança emocional e na validação da dor alheia. “A cura não é erradicar o vício, mas compreender o que ele tenta nos dizer”, afirma.
No Reino dos Fantasmas Famintos é mais do que um livro sobre vícios. É um chamado à empatia, uma crítica contundente ao modelo médico tradicional e um convite para reavaliar a forma como olhamos para a dor — dos outros e, principalmente, a nossa.
Comente sobre o post