Na Amazônia, o garimpo ilegal deixou de ser apenas uma pá carcomida escavando ouro em silêncio. Agora, o cenário é mais cinematográfico: arsenais de guerra, rotas internacionais, tráfico de tudo que puder ser traficado e, claro, a velha e má exploração humana — tudo embrulhado num pacote de cinismo institucional com laços de negligência. O “Mapeamento dos Impactos da Mineração Ilegal na Amazônia”, lançado nesta quinta (26), revela um Brasil profundo onde o GPS da dignidade perdeu completamente o sinal.
O estudo, realizado pela Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) e o Instituto Conviva, não traz boas notícias: revela um sistema que mistura prostituição forçada, tráfico humano, trabalho análogo à escravidão e a repetição cega de ciclos históricos de violência. Tudo isso com uma eficiência logística que faria inveja a qualquer empresa de transporte.
Quer um exemplo? Entre 2022 e 2024, só em Roraima, 309 pessoas foram vítimas de tráfico humano — 227 migrantes e 82 brasileiros. Mulheres são as maiores vítimas, mas o pacote de horrores não exclui homens, crianças e pessoas LGBTQIA+. Em nome do ouro, tudo vale — até a perda completa da humanidade. Literalmente.
E não pense que é só o garimpeiro com cara suja de lama e ouro na mão. Há toda uma economia paralela — moderna, conectada e, acredite, financiada. Segundo o relatório, grandes empresas bancam voos clandestinos e barcaças de mercadorias, abrindo caminhos que conectam Colômbia, Venezuela e Brasil como se fossem delivery de destruição. Chegam remédios? Não. Chegam drogas. Chegam livros? Também não. Chegam fuzis, mulheres traficadas e promessas que viram pesadelos.
Para completar a equação macabra, temos o novo perfil do garimpeiro: mais armado, mais conectado e mais perigoso. Os chamados “narcogarimpos” são uma mistura de cartel colombiano com reality show de sobrevivência — só que sem prêmio e com muita violência.
A pesquisadora Márcia Maria de Oliveira aponta o óbvio que ninguém com poder parece querer enxergar: essas pessoas estão nas margens não por acaso, mas por um Estado que simplesmente não chega. As mulheres que cozinham, vendem, prestam serviços sexuais ou apenas tentam sobreviver são criminalizadas. E os homens que carregam picaretas e fuzis também são, muitas vezes, vítimas de um sistema que os engoliu antes mesmo de nascerem.
Entre os depoimentos chocantes está o de Maugê (nome fictício), uma jovem venezuelana. Ela conta que foi estuprada diariamente por 15 dias seguidos em um garimpo. Não há ironia que dê conta de traduzir esse nível de horror. Mas há, sim, indignação — e ela precisa sair dos relatórios e bater à porta de quem assina decretos com a caneta do silêncio.
Outros relatos mostram homens que dizem “aprender a não esperar nada da vida”, marreteiros que percorrem rotas entre Guiana, Suriname e Venezuela com mercadorias e medo, e idosos que passaram a vida inteira de garimpo em garimpo, enterrando dignidade em troca de sobrevivência.
Mas o garimpo não é só violência física. É também simbólica. Em Boa Vista, a maior estátua da cidade é de um garimpeiro. Um monumento à omissão institucional e à romantização do saque. Como se o ciclo do Brasil colônia tivesse pegado um Uber direto pro século XXI.
O mapeamento revela, no fim das contas, o que já suspeitávamos: o garimpo ilegal virou negócio grande. Com avião, Wi-Fi, metralhadora e aliança política. Enquanto isso, as populações indígenas — como os Yanomami — lutam sozinhas, expulsando garimpeiros como quem expulsa uma doença que o próprio governo insiste em fingir que não existe.
A resistência, no entanto, pulsa. Está nas aldeias, nas comunidades, nas palavras como “Nhandereko”, que significa “nosso jeito de ser” em Nheengatu, língua desenvolvida a partir do tupinambá, falada ao longo de todo o vale amazônico brasileiro até a fronteira com o Peru, na Colômbia e na Venezuela; língua geral amazônica. Está na luta de mulheres, homens e crianças que ainda ousam acreditar que a floresta não precisa ser trocada por ouro manchado de sangue. E está, finalmente, em estudos como esse — que escancaram verdades incômodas num país que há séculos se acostumou a enterrá-las sob o pretexto do progresso.
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