O Fantástico resolveu mergulhar no universo da cannabis medicinal, mas parece que esqueceu de checar a temperatura da água antes de entrar. No último domingo, a reportagem sobre o chamado “ice” — uma técnica de extração sem solventes usada para fins terapêuticos — acabou escorregando ao associar o método a dependência química. A reação? Não demorou. Especialistas e usuários terapêuticos acenderam o alerta… e não foi um baseado.
Quem puxou a primeira tragada crítica foi a psicóloga Alice Reis, que atua na Califórnia, estado onde a cannabis medicinal é regulamentada e o “ice” é tão comum quanto óleo de copaíba nas prateleiras naturais. Em seu perfil no Instagram, ela fez o que o jornalismo deveria ter feito: explicou, com clareza, que o “ice” não é uma droga ilícita ou uma substância viciante, mas sim um processo de extração mecânica e limpa dos tricomas da planta, sem adição de produtos químicos.
Em outras palavras: é o equivalente canábico a espremer suco de laranja na mão — se a laranja tivesse propriedades anti-inflamatórias, ansiolíticas e potencial terapêutico para epilepsia, dor crônica e distúrbios do sono.
A confusão feita pelo programa da Globo não é inédita. Basta o tema cannabis entrar em pauta para que velhos reflexos moralistas entrem em cena, com direito a trilha sonora dramática e depoimentos que misturam crime, uso recreativo e terapias alternativas como se tudo fosse parte da mesma erva daninha.
Spoiler: não é.
O “ice”, ou hashish de água e gelo, é uma das formas mais puras de extrair os princípios ativos da planta — como o THC e o CBD — sem precisar de butano, etanol ou qualquer solvente químico. É feito com água fria, gelo e agitação mecânica. O nome pode até parecer título de série policial, mas o resultado é um concentrado usado por pacientes que precisam de alívio rápido, preciso e seguro.
Enquanto isso, na Califórnia, pacientes que fazem uso da técnica seguem suas vidas — sem alucinações, sem vício e, com frequência, com menos remédios de tarja preta na prateleira.
A crítica de Alice, que entende tanto de saúde mental quanto de regulação internacional, também levanta uma questão mais ampla: a falta de preparo da grande mídia para tratar do tema com responsabilidade científica. Em vez de abrir espaço para debate sério sobre regulação, métodos e resultados clínicos, preferiu reforçar estigmas e confundir o público — tudo isso em pleno 2025, quando até a Anvisa já anda reavaliando seus próprios protocolos.
No Brasil, a cannabis medicinal é uma realidade que avança aos trancos e barrancos, muitas vezes puxada por famílias, médicos e associações que sabem na pele o que é viver com dor ou crises epilépticas. E, nesses casos, o “ice” não é uma porta de entrada para as drogas — é uma porta de saída para o sofrimento.
Fica a lição: se o jornalismo quer informar, que traga luz e não fumaça. Porque confundir tratamento com tráfico, só porque tem cheiro de planta, é tão ultrapassado quanto achar que gelo com água é sinal de crime.
Talvez o próximo passo seja claro: menos sensacionalismo e mais ciência. E, quem sabe, uma entrevista com a Alice antes de rodar a matéria.
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