Enquanto o Brasil ainda tenta equilibrar o ensino público entre falta de verbas, apagões pedagógicos e ausência de merenda, em Itapoá (SC), uma nova frente de batalha se abriu: a guerra contra Jorge Amado. A ofensiva foi iniciada pela vereadora Jéssica Lemoine (PL), que propôs o banimento do clássico Capitães da Areia das escolas públicas do município.
Segundo a parlamentar, o livro “promove a marginalização infantil e romantiza o estupro”. Para ela, a obra serviria de “ferramenta para que a esquerda se infiltre na educação” — argumento que, por si só, já renderia um bom enredo de ficção distópica. A vereadora ainda defende que o título deveria ser classificado para maiores de 18 anos, ignorando o fato de que livros, ao contrário de filmes e jogos eletrônicos, não são submetidos ao sistema de classificação indicativa no Brasil.
Escrito por Jorge Amado em 1937, Capitães da Areia retrata um grupo de meninos de rua em Salvador, com todas as suas contradições, violências e afetos. Proibido durante o Estado Novo e queimado em praça pública pelo governo Vargas, o romance é reconhecido como denúncia social e foi traduzido para dezenas de idiomas. Ao longo das décadas, tornou-se leitura obrigatória em vestibulares e foi adaptado para o cinema, teatro e até música.
A crítica de Lemoine, no entanto, parece não mirar o conteúdo literário em si, mas o imaginário político que ela atribui ao autor e à obra. Jorge Amado, que foi deputado constituinte pelo Partido Comunista Brasileiro e teve papel ativo na criação das leis de proteção à cultura nacional, volta e meia é ressuscitado no debate público — não por sua literatura, mas por suas convicções ideológicas.
A proposta da vereadora reacendeu o debate sobre censura e liberdade de ensino. Para educadores, a tentativa de retirada da obra reflete uma incompreensão sobre o papel da literatura na formação crítica dos alunos. “Querem higienizar a realidade em nome da moral, como se a exclusão social não existisse”, disse um professor da rede estadual sob condição de anonimato.
Nas redes sociais, a polêmica virou combustível para memes, protestos literários e até promoções de editoras que passaram a oferecer descontos em livros de Jorge Amado. Ironia ou justiça poética, Capitães da Areia, 87 anos depois de sua publicação, volta a ser símbolo de resistência — não mais contra a ditadura de Vargas, mas contra o revisionismo mal lido da era digital.
Enquanto isso, nas salas de aula de Itapoá, estudantes aguardam para saber se a próxima obra recomendada será um panfleto ou um clássico. E Jorge, mais uma vez, assiste do além — provavelmente com um sorriso de Pedro Bala.
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