Antes de se tornar o cronista oficial da malandragem carioca, Bezerra da Silva enfrentou a dura realidade das calçadas de Copacabana e não como turista. Morador de rua por anos, ele experimentou o fundo do poço com profundidade suficiente para escrever samba com CPF, endereço e denúncia. Em um desses dias em que a esperança parece ter pego o último ônibus, tentou dar cabo da própria vida. Foi salvo não por um anjo, mas por um terreiro de umbanda, onde, entre tambores e guias, descobriu que seu destino não era o cemitério, mas o samba.
Foi ali, entre rezas e passes, que alguém do além resolveu dar um empurrão na carreira que o Brasil ainda não sabia que precisava. Disseram-lhe que ele deveria seguir a música. E, obediente, Bezerra trocou o sofrimento pelo surdão, e o desalento pela batucada, com uma sensibilidade mediúnica capaz de psicografar a alma da periferia urbana.
Nos anos 1970, enquanto boa parte da elite musical ainda achava que samba era coisa do morro distante, Bezerra estava no palco ao lado de Zé Ramalho, misturando regionalismos, guitarras e denúncias com a desenvoltura de quem conhecia o esgoto pelo cheiro. A parceria rendeu até mesmo uma versão de “Vou Apertar, Mas Não Vou Acender Agora”, gravada por Zé e eternizada por Bezerra como um hino nacional não oficial da diplomacia canábicahttps://www.youtube.com/watch?v=tk5a4u4ybwM&list=RDtk5a4u4ybwM&start_radio=1.
Mais que um sambista, Bezerra virou uma instituição: o porta-voz dos esquecidos, o advogado informal dos oprimidos e o único capaz de traduzir o Código Penal em versos com rima e ritmo. Sua vida é um lembrete sarcástico de que, no Brasil, às vezes só mesmo a intervenção espiritual salva e que nem todo malandro nasce pronto, mas alguns são empurrados pelo destino com atabaque e feijão.
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