Às vésperas do conclave que escolherá o sucessor de Francisco, ressurgem ecos de uma história que, embora desmentida pela historiografia, persiste como símbolo: a da papisa Joana. Segundo relatos medievais, uma mulher teria assumido o papado disfarçada de homem, até ser desmascarada, após dois ou três anos, ao dar à luz em plena procissão. A narrativa — nascida por volta do século XIII e amplificada por cronistas como o polonês Martinho de Opava — ecoou por séculos como um alerta contra a presença feminina no alto clero.
Historicamente improvável, a figura de Joana se tornou uma alegoria poderosa do medo institucional diante da possibilidade de mulheres ocuparem lugares de comando. Usada como arma durante a Reforma e reinterpretada com tons misóginos ao longo do tempo, a lenda cristalizou a ideia de que o papado é, por definição, masculino.
Mais de mil anos depois do suposto episódio, a estrutura permanece praticamente inalterada. A Igreja Católica ainda veta a ordenação feminina, e as mulheres seguem impedidas de celebrar sacramentos. Os poucos avanços conquistados nas últimas décadas — como a nomeação de conselheiras e secretárias para cargos administrativos — têm valor simbólico, mas não alteram a base da exclusão.
Francisco tentou abrir caminhos: criou comissões para estudar o diaconato feminino, nomeou mulheres para cargos inéditos, entre essas nomeações, destacam-se a Irmã Simona Brambilla, a primeira mulher a liderar um “ministério” (Dicastério) do Vaticano, e a Nathalie Becquart, a primeira mulher com direito de voto no Sínodo dos Bispos. Outras figuras incluem Barbara Jatta, diretora dos Museus do Vaticano, e a Irmã Raffaella Petrini, secretária-geral do Governatorato do Estado da Cidade do Vaticano. e defendeu maior participação delas nas decisões eclesiais. Mas os limites continuam impostos por uma doutrina consolidada na Idade Média — e, até hoje, raramente questionada nas estruturas centrais.
Ao lembrar a papisa Joana, não se trata de confirmar um mito, mas de reconhecer a verdade que ele simboliza: o incômodo profundo que a presença feminina causa quando se aproxima de um poder construído para ser inacessível a elas. O silêncio institucional e a repetição secular desse modelo tornam evidente que, embora os tempos mudem, a cúpula da Igreja continua fechada às vozes que vêm de fora do púlpito — especialmente, às que vêm de mulheres.
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