Em muitas famílias, há sempre alguém que “dá mais trabalho”. Aquele que interrompe jantares com descompassos, causa constrangimento em encontros, vira pauta nos bastidores e, não raro, aparece como o elo fraco da corrente. Quando esse alguém é um alcoolista, o veredito costuma ser implacável: irresponsável, instável, “desajustado”. Mas e se essa pessoa for, na verdade, a mais sensível de todos?
Cada vez mais terapeutas familiares, estudiosos da psicologia sistêmica e grupos de recuperação têm apontado para uma leitura menos moralista — e mais relacional — do alcoolismo. Em vez de tratar o dependente como o centro do problema, ele começa a ser visto como o portador de um sintoma maior: o da dor coletiva que foi empurrada por gerações para os cantos escuros da casa.
Não é raro que a pessoa que recorre à bebida seja a única que já não consegue manter a fachada. Enquanto os demais mantêm a polidez e o bom desempenho, ela desaba. E, ao desabar, expõe o que os outros gostariam de manter invisível. Torna-se, então, o foco da atenção, do julgamento e, paradoxalmente, o bode expiatório. É o mais doente? Ou o mais exposto?
Especialistas como Virginia Satir e Bert Hellinger já descreveram dinâmicas familiares em que o chamado “paciente identificado” — aquele que “carrega o sintoma” — é quem, de forma inconsciente, revela o que está desequilibrado no todo. A bebida, nesse caso, pode ser menos uma fuga egoísta e mais uma tentativa desesperada de sobreviver num ambiente onde o silêncio virou regra e a dor, um tabu.
A recuperação, para muitos, não se resume a parar de beber. O verdadeiro desafio é permanecer sóbrio em um sistema que ainda prefere a negação. É suportar o peso da lucidez num ambiente emocionalmente embriagado. Porque parar de beber é uma coisa. Mas olhar com clareza para os porquês — e para quem, e para o quê — é outra história.
Mais do que rotular ou isolar, talvez a saída seja escutar. Não para justificar os excessos, mas para compreender as causas. Ninguém bebe até cair porque está tudo bem. E às vezes, quem mais incomoda, é quem mais revela.
Em famílias onde o afeto virou esforço, e a dor precisa vestir fantasia, o alcoolista pode ser, ironicamente, o mais são entre os que fingem estar bem. Não porque tem todas as respostas, mas porque não conseguiu mais viver à base de fingimentos. E essa coragem, ainda que torta, pode ser o primeiro passo de um caminho que não se faz sozinho.
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