Em 1989, enquanto o Brasil tateava os primeiros passos da redemocratização e se preparava para sua primeira eleição direta à presidência após duas décadas de ditadura, a TV Globo levava ao ar uma novela que parecia mais uma crônica escrachada da política nacional. Que rei sou eu?, criada por Cassiano Gabus Mendes, misturava reis caricatos, ministros corruptos, revoltas populares e tramas palacianas — tudo ambientado em um reino fictício chamado Avilan. Mas quem assistia, mesmo que por acidente, sabia: aquilo ali era sobre o Brasil.
Trinta e cinco anos depois, o jornalista, sociólogo e cientista político Bruno Filippo decidiu voltar a esse enredo com lupa crítica. Em seu recém-lançado livro Que rei sou eu? – Política e novela no Brasil (Topbooks), ele analisa a produção não só como entretenimento, mas como documento político involuntário (ou não) de uma era confusa, ansiosa e cheia de armadilhas ideológicas.
A obra traça paralelos entre o roteiro da novela e o cenário político da época, apontando como personagens e situações, embora cômicas, reproduziam com fidelidade os bastidores do poder no fim dos anos 1980. Em entrevista à coluna Gente, Filippo lembrou que a novela, exibida às 19h, foi criticada por todos os lados do espectro político. “A direita achava que era deboche contra as instituições; a esquerda acusava a Globo de usar o humor para relativizar a crítica política, esvaziando o discurso. Houve até quem dissesse que Que rei sou eu? ajudou a pavimentar o caminho para a eleição de Collor”, conta o autor.
No livro, Filippo articula o contexto da produção com pesquisas sobre comunicação política, memória coletiva e o papel social da telenovela no Brasil. Ele relembra que a trama, estrelada por Edson Celulari, Tereza Rachel, Daniel Filho e Giulia Gam, fazia paródia direta com a monarquia, mas oferecia camadas que dialogavam com o presidencialismo, os escândalos de corrupção e a desilusão popular com o processo político.
“É curioso perceber que, mesmo sendo uma obra ficcional e fantasiosa, a novela funcionava quase como um editorial diário. Era entretenimento, mas com potência de crônica”, analisa Filippo, que também discute no livro a viabilidade de um remake nos dias atuais. “A televisão de hoje tem menos fôlego para ironia política. E o público, menos tolerância ao deboche institucional.”
O lançamento do livro acontece em um momento em que se discute o retorno de obras clássicas da teledramaturgia. Mas, como bem lembra Filippo, atualizar Que rei sou eu? exigiria mais do que trocar os cenários e os figurinos: seria preciso, talvez, inventar um novo país.
Ou admitir que continuamos presos ao mesmo enredo.
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