A ciência já bateu o martelo, mas a sociedade continua tentando resolver trauma com sermonete. Para o médico canadense Gabor Maté, especialista em dependência química e famoso por apontar verdades desconfortáveis, a questão não é saber por que alguém usa droga. A pergunta honesta seria: o que está doendo tanto aí dentro?
Mas claro, isso dá mais trabalho do que culpar o álcool, o crack, o cigarro eletrônico, o jogo online ou a dose diária de pornografia. Afinal, se o problema for a substância, basta proibir. Agora, se o problema for uma infância inteira marcada por ausência, gritos ou silêncios piores do que gritos, aí complica — ninguém quer olhar esse espelho.
Maté não está falando de um trauma cinematográfico. Muitas vezes, a raiz do vício é uma infância funcional por fora e emocionalmente deserta por dentro. A criança aprende cedo que sentir é perigoso. Então, ela se adapta. Se molda. Se esconde. E quando cresce, descobre uma anestesia acessível — um gole, um trago, um clique — que faz a dor sumir por meia hora. É amor à primeira dose.
O cérebro, bobo que é, grava a lição: “isso aqui ajuda”. O problema é que ajuda mesmo. Pelo menos por um tempo. O bastante para virar hábito. E quando o alívio evapora, o que sobra é um combo tóxico de vergonha e culpa — como se a pessoa tivesse escolhido aquela espiral, quando na verdade ela só queria parar de sofrer.
O vício, segundo Maté, é a tentativa desesperada do cérebro de sobreviver num corpo que nunca se sentiu seguro. E parar de usar não é a cura. É só o começo. Porque o verdadeiro processo não envolve apenas dizer “não” à substância — envolve reaprender a dizer “sim” à própria dor, sem precisar correr dela.
Claro, isso não cabe num tweet. Nem em uma conversa de bar. É por isso que o estigma continua sendo a ferramenta favorita de uma sociedade que odeia nuances. Mas, como diria Maté, ninguém acorda num belo dia e pensa: “vou arruinar minha vida antes do café da manhã”. O que as pessoas querem é simples: um pouco de alívio.
E talvez, um dia, elas descubram algo mais eficaz — e menos devastador — que um copo cheio. Algo como escuta, presença ou o raro luxo da compaixão.
Comente sobre o post