Era para ser só mais uma manhã.
O sol nascia sobre Gaza com a mesma luz de sempre — talvez até mais bonita, se alguém ali ainda ousasse reparar em beleza. Um menino acordaria com preguiça, reclamando do dever de casa, perguntando se podia brincar antes do café. Uma menina perguntaria onde estava seu caderno, porque hoje teria aula de ciências, e ela gostava da professora.
Mas nada disso aconteceu. Porque não foi só mais uma manhã.
A bomba caiu antes do café. Caiu antes da aula, antes do dever de casa, antes da risada no quintal. Caiu antes que os pais pudessem dizer “bom dia”, antes que os filhos pudessem dizer “até mais tarde”.
E o mundo? O mundo continua. Com suas reuniões, seus aplicativos, seus cafés gourmet e suas palavras mornas. O mundo “lamenta profundamente” — essa expressão que virou senha para a indiferença elegante. “Lamentamos profundamente as mortes”. Mas quem morre não quer lamento. Quer justiça, quer respiro, quer viver.
Nos escombros, uma boneca sem braço. Um caderno rasgado com o nome de uma menina que não vai mais aprender o nome dos planetas. Um chinelo pequeno. Um livro de colorir que ficou cinza de poeira. E, ao lado de tudo isso, uma mãe gritando o nome do filho que ninguém mais responde.
Dizem que a guerra é complicada. Dizem que é uma questão “histórica”, “religiosa”, “geopolítica”. Dizem, como se isso explicasse o inexplicável. Como se qualquer argumento do mundo pudesse justificar o sangue de uma criança. Como se uma faixa de terra pudesse valer mais que uma vida pequena, recém-começada.
Os homens discutem fronteiras com dedos em mapas, mas os corpos estendidos no chão não cabem em cartografia nenhuma. Não há GPS que mostre o caminho de volta para quem perdeu tudo. E não há tratado de paz que devolva um filho ao colo de uma mãe.
Israel chora seus mortos. Gaza, os seus. E eu me pergunto: quantas lágrimas ainda são necessárias para molhar a consciência do mundo? Quantas covas infantis precisam ser abertas até que se diga, sem mas nem porém, que matar criança é inaceitável? Que matar criança é o fim de qualquer razão?
A guerra não tem heróis. Tem órfãos. Tem sobreviventes com traumas que não cabem em laudos. Tem crianças que, quando desenham, não fazem casinhas com sol e árvore, mas tanques, aviões, explosões. Tem gente que desaprendeu a sonhar, porque o futuro virou um lugar onde só se chega de sorte.
E, no entanto, aqui estou eu, escrevendo crônica. Tentando alinhar palavras como quem varre cacos com as mãos. Não resolve, eu sei. Mas também não consigo calar.
Porque enquanto houver uma criança sem nome, soterrada sob o que restou de sua casa; enquanto houver uma escola bombardeada, um hospital em ruínas, um pai implorando por ajuda com os olhos vazios — então escrever é o mínimo. Gritar com palavras é o mínimo.
E se hoje um menino não pode empinar sua pipa, se uma menina não pode abrir seu caderno, então que o papel da crônica sirva, ao menos, para guardar o que sobrou da infância deles: um sonho interrompido, uma esperança por recomeço.
Quem sabe, um dia, os céus de Gaza e de Tel Aviv voltem a ter apenas nuvens. Quem sabe, um dia, as crianças possam aprender que há guerras que não se repetem. E que a humanidade — essa que hoje sangra — ainda é capaz de se reconhecer no olhar do outro.
Até lá, escrevo. E escrevo como quem segura a mão de uma criança que não conheci. Como quem promete: não vamos esquecer.
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