10/02/2025 às 15h00Atualizada em 10/02/2025 às 18h00
Foto: Reprodução
Por Romero Azevêdo Woke up this morning/ Singing an old, old Beatles song... cantava Caetano naquele emblemático e tão distante ano de 1972. Hoje, ouvindo a nova/velha canção dos Beatles, Now and Then,( Premiada com o Grammy 2025 de Melhor Performance de Rock, oitava estatueta do grupo, a primeira foi em 1965), lembrei imediatamente o disco velho/novo lançado por Numa Ciro em 2020 (a data cronológica não quer dizer nada porque é um disco de ontem, de hoje e de amanhã também). O disco de Numa, disponível em todas as plataformas de áudio, é música, é poesia, é cinema, é cordel, é teatro, é literatura, é surrealismo, é impressionismo, é história, é memória, é o eterno presente em suas metamorfoses de ontens e amanhãs. Em síntese: é um disco que tem a perenidade beatles. Here, There and Everywhere. Registro seminal de toda uma caminhada sob o sol e sobre o sol (The Long and Winding Road), encontrei nas nuanças das treze faixas do álbum os assimétricos planos gerais de Antonioni, os jump-cuts de Godard, as emboladas de Dedé e Antônio da Mulatinha, o cão emplumado do João que não gostava de música, os acordes dissonantes do outro João que era a própria música, o beijo de Rock Hudson em Gina Lollobrigida numa vila em Portafino na Itália... antropofagia sideral. Dado isso, tem ainda Dada Isso, música de Jean Claude Burg, onde a letra de Numa canta cartões nonsense ao nosso olhar comum / instantâneas impressões / nuvens cubistas surreais / feras soltas, cavalo de pau/vacas sorrindo e já não riem mais... caleidoscópica viagem, miragem onírica que faz a ponte com a tropicália lá atrás: Viva a banda, da, da / Carmem Miranda, da, da, da, da. Psicodélica, deliciosa batida pop de Numa e Lan Lanh, é daquelas músicas que a gente ouve e sai logo dançando por aí como se fossemos uma Ginger Rogers, um Fred Astaire, um Lennie Dale, um Jorge Danel, uma Rita Moreno/Ariana DeBose. Em Vigésima Hora, parceria com Tania Christal, Numa Ciro evoca o onipresente cinema: preste atenção no detalhe / na vigésima hora / quando o vento levou / ah, essa noite / infinitas vezes, reprises / já decorei esse filme... Xote À Primeira Vista, mais uma letra de Numa com música de Tibor Fittel, embora a interpretação da autora seja de fino trato, a música merece muito uma interpretação/gravação de Flávio José (alô Flávio!) pois é um xote de responsa, letra e música combinadas com esmero, poesia e ritmo convidando o par para rodopiar no salão, grudadinhos, whoah, we danced through the night / and we held each other tight, como inspira a letra da canção: o xote vai dizer / o que eu não disse / nem a mim nem a você / no xote a gente conversa à vontade / faz amor, mata saudade / da saudade que vai ter. No variado caldeirão de ritmos e estilos do disco, e aqui me veio agora a imagem daqueles mostradores de bombons, vistosos compartimentos de vidro que giravam exibindo a diversidade de doces no balcão da bodega (que delícia!), tem também um fado no melhor estilo Amália Rodrigues/Antônio Zambujo/Carminho; trata-se de Rua da Saudade (Numa Ciro, José Miguel Wisnik) com participação vocal de Jussara Silveira, como todo bom fado, é melodramático, assentado em imagens pretéritas, diáfanas, desejando ver outra vez: saudade fez da quimera / uma razão de existir. A Feira Grande de Campina Grande é uma grande obra-prima (assumo a hipérbole), finalmente uma música descrevendo nosso maior patrimônio afetivo/histórico/cultural/comercial fica ombro a ombro ao lado da famosa Feira de Caruaru de Onildo Almeida. Não, não é exagero algum de minha parte, é simples constatação. Evidentemente que pelo tempo em que foi feita, pelas repetidas execuções radiofônicas, pela gravação de Luiz Gonzaga feita em 1957, A Feira de Caruaru está mais presente no imaginário do povo, mas a música de Numa, um filme em forma de canção, pela riqueza descritiva da letra, pela melodia mágica do bruxo albino Hermeto Pascoal, há de chegar aos corações e mentes dos ouvintes e ali estabelecer morada ficando para sempre. Quem viver verá (assumo o clichê). Muito além do gênero gramatical, a arte sim é mulher, como afirma Numa na viagem estelar, across the universe, em nova parceria com Lan Lahn que diz: ao sentimento ela deu um coração / e inventora do amor e da razão / a arte é mulher. Não esqueci a capa, um belo pastel de Hildebrando de Castro, uma expressão kabuki, teatro popular que embora dominado hoje pelos homens foi fundado por uma mulher, uma sacerdotisa de nome Okuni, no século 16. O baile de Numa Ciro, João Donato and a little help from her friends é (muito) divertido, já ensaio uns passinhos. Come together!
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