Delivery: a estreia marcante de Virginia Cavendish na direção cinematográfica
Delivery: a estreia marcante de Virginia Cavendish na direção cinematográfica
Por: Romero Azevêdo
09/06/2025 às 11h07Atualizada em 09/06/2025 às 14h07
Foto: Reprodução
Sobre a atriz Virginia Cavendish as palavras sobram, basta ver O Auto da Compadecida e/ou Lisbela e o Prisioneiro para confirmar o que digo.Aqui falo da diretora estreante, diga-se de passagem, uma altissonante estreia, que nos chega com um filme que é puro arrebatamento audiovisual para quem gosta e compreende ao menos um pouco as delicias (e as dores) dessa arte chamada cinema, a mais popular das artes.Delivery é um thriller existencial, e como diz o título, entrega (trocadilho assumido). Entrega uma trama engenhosa, uma decupagem precisa, uma mise en scène, como gostam de dizer os franceses, criativa, inventiva e, em certos momentos, hipnotizante.Vimos Delivery na 19° edição do Festival Comunicurtas, em Campina Grande (edição do ano 2024), e foi uma mais que grata surpresa.O filme é um tour de force instigante, modelado num reduzido espaço cênico que não se torna claustrofóbico porque a câmera, um trabalho feito a quatro mãos por Toni Gorbi e Caetano Braga amplia o espaço diegético com movimentos precisos e enquadramentos que ultrapassam a barreira do geometrismo pictórico, criando uma dissonância na imagem e dando novos significados aos elementos em cena, inclusive os atores. A direção de arte, de Marisa Bentivegna, é outro destaque deste filme: numa cena vemos um carrinho de supermercado com monitores de computador e um teclado, melhor síntese visual da sociedade “come e tecla” que vivemos hoje não consigo imaginar.A montagem/edição de Daguito Rodrigues (também codiretor do filme) dilata o exíguo espaço cênico com planos nada convencionais que dão ritmo à narrativa descolando-a de sua matriz teatral.A dupla de atores, Marcello Airoldi (que também assina o roteiro com Cavendish) e Nelson Baskerville, merece uma celebração à parte. Num filme com uma estética realista - embora a atmosfera nos lembre Cortázar - como Delivery o é, quanto mais o ator desaparece para fazer o personagem aparecer melhor. Se fosse uma peça de teatro brechtiana seria justamente o contrário, mas não se trata disso. Airoldi e Baskerville caminham na invisível corda bamba estirada em cena de forma equilibrada, não existe aqui a figura da “escada”, aquele personagem que numa dupla atua apenas para “levantar” as falas para o outro. Não, cada um é protagonista, no seu tempo e no seu espaço. Os diálogos, econômicos, como se fossem uma espécie de aforismos sem o apenso moral, reforçam o naturalismo proposto.O humor, elemento que está no código genético do cinema nacional (Grande Otelo, Oscarito, Zé Trindade, Mazzaropi, Zezé Macedo,Pagano Sobrinho, Ankito, Carmen Miranda...), aparece em Delivery; num dos momentos muito engraçado os personagens conversam sobre um déjà-vu. Hilário.Os planos-sequência em plano geral exploram o senso dramático da encenação, da cenografia, da fotografia num limite quase asfixiante tirando o espectador do comodismo da poltrona, jogando-o para dentro da ação (com respiração ofegante e tudo).Quanto à trama em si, nada mais contemporâneo. O espirito belicoso que assola o Brasil nesses últimos 5 anos, a paranoia que aterroriza as pessoas que não sabem o que os esperam atrás da porta, a uberização que é a mais nova forma, cruel, de exploração dos trabalhadores (ver Você Não Estava Aqui de Ken Loach, 2019), a desconfiança patológica que divide e afasta as pessoas, as notícias de jornal datadas que se atualizam permanentemente porque nada muda mesmo, o jogo de futebol que não importa o dia em que foi jogado mas o confronto, o embate, a rixa inconsequente e selvagem entre os torcedores. A recente revelação pela Policia Federal de uma trama golpista que incluía o envenenamento do presidente da república e seu vice (seria uma pizza envenenada?) coloca o filme no tempo presente, com a vida, ironicamente, imitando a arte. A concepção estética de Delivery não está dissociada da realidade, ao contrário se nutre dela.A trilha-sonora, de Daniel Maia, com o apoio de Rafa Cumis na captação do som-direto, abrindo com aquele solo de um violoncelo e logo depois o som do rádio como uma terceira voz dialogando com os dois personagens, o ringtone do celular desarmonizando ainda mais aquela caótica harmonia, o ruído dos envelopes passando por baixo da porta, som cortante como faca, prenunciando o inesperado. Uma banda sonora funcional que compõe o espectro dramático do filme se projetando como um terceiro personagem em cena.A entrada de Virgínia Cavendish no grupo de atrizes que passaram para trás das câmeras, como a japonesa Kinuyo Tanaka, a americana Ida Lupino, as brasileiras Carmen Santos, Gilda de Abreu, Carla Camurati e Dira Paes, só para citar alguns exemplos, se dá em alto nível de concepção estética, timing dramático e absoluto domínio do aparato cinematográfico. O primeiro filme dela capta o espectador pela diferença, não pela imitação.Tomara, meu Deus tomara, (como canta Alceu) que ela continue nesse oficio. A atriz e a produtora já conhecíamos e aplaudíamos de pé o seu trabalho, a diretora que nos chega agora segue na mesma pisada, com qualidade e talento de sobra.Que seja bem-vinda.
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